Dias de loucura noturna


Eu morava num pequeno apartamento com minhas duas tias por parte de mãe, Lídia e Elane, e não aguentava mais o maldito cheiro de chá de camomila que circulava pelos cômodos. Naquele tempo eu virava a noite lendo Bukowski, um poema mais fudido que o outro, um conto mais devastador que seu anterior. O clima estava fechado em outono e Dylan e o Springsteen rugiam o dia todo no meu quarto e dava pra ouvir a ocupante do andar de cima reclamando do volume alto mas eu não tava nem aí.

A madrugada era a melhor hora. Éramos eu, Gabriel e seu irmão, Nando, e Carol, quatro nômades à beira da insanidade vagando pelas ruas sem culpa e sem rumo, correndo por um largo deserto em busca de uma dose do uísque mais barato, criaturas marcadas por um amor indescritível pela vida e pelo mundo, sem o menor esforço para parecerem intelectuais ou coisa do tipo. A turma era o que havia de melhor, e depois das 2 da noite tudo era possível.

Gabriel namorava uma garota três anos mais nova que ele e que estava começando a faculdade chamada Karina. Um dia ele ouviu uma história de duas garotas que a princípio não acreditou mas a notícia se espalhou e logo descobrimos que era verdade, que Karina estava se encontrando com outro cara enquanto ele ia para um curso à noite e eu lembrei imediatamente de Hendrix:

“Yeah, estou indo atirar na minha ex-mulher pois a peguei paquerando com outro cara, o que não é muito legal.” Nando, exagerado como sempre, saiu dizendo que o irmão ficou cinco meses em uma profunda depressão por causa da traição mas como todos o conheciam ninguém levou muito a sério e logo Gabriel parou de vomitar as borboletas em seu estômago e voltamos a ser a mesma alcateia louca de sempre.

Mas Gabriel era na verdade o vagabundo mais iluminado que eu já conheci, com sua postura de Jim Morrison e sempre fazendo todos rirem e dedilhando com seu velho violão de nylon as antigas marchas de Dilermando Reis. Sim, o violão, ele andava pra cima e pra baixo com o instrumento sem deixar ninguém tocar nele, não era e não tinha a menor pretensão de ser um músico profissional mas ele tinha um talento quase nato pra tirar sons que uivavam todo o faroeste de Neil Young e Bob Dylan, e isso foi o que mais me impressionou e me fez rastejar em sua companhia desde o ensino médio.

Então estávamos andando em bando como sempre fazíamos. Compramos uma garrafa de uísque e nos perguntávamos o que iríamos fazer naquela noite. A resposta logo veio em nossas mentes quando avistamos um carro parado logo à frente. O pai de Carol era um velho mecânico que vivia com outra mulher há um bom tempo e havia ensinado à filha muita coisa sobre carros, e então depois que Nando quebrou o vidro da janela e abriu a porta do carro, Carol fez uma ligação direta e saímos por aí, sem medo ou discussão, ouvindo o Bon e velho Jovi que tocava no rádio. O motor rugia alto e cantávamos “I’M A COWBOY, ON A STEEL HORSE I RIDE” quebrando o silêncio da noite.

Fomos em direção à praça no centro da cidade que estava lotada de gente naquela noite e tinha um palco montado em frente ao arco com pessoas que andavam pra lá e pra cá, o ruído de suas conversas entorpecendo o ar e as pequenas barracas de homens que vendiam bebidas. Estacionamos o carro num beco e nos acomodados em meio à multidão. Era fascinante ver todo aquele movimento vivo da cidade, todas as luzes, as pessoas, o céu que se erguia acima de nossas cabeças. Eu não estava com a menor vontade de sair naquela noite mas o velho lobo uivante de Ginsberg parecia ter baixado em mim e eu logo estava faminto de viver tudo ao mesmo tempo e agora havíamos encontrado o lugar ideal para isso.

Então uma banda subiu ao palco e eles logo começaram a tocar Legião, Mutantes e Paralamas para a alegria de todo o movimento, mas foi só quando tocaram Malandragem, o nosso verdadeiro hino, que descrevia completamente nossas vidas, que todo mundo foi à loucura e cantamos com a multidão “eu só peço a Deus um pouco de malandragem, pois sou criança e não conheço a verdade!”. Todos logo começaram a gritar “TOCA RAUL!” e eles tocaram duas do Raul Seixas. E então foi uma do Kid Abelha pra encerrar a noite e tudo o que vimos foram os casais à nossa volta que trocavam olhares calmos e apaixonados e Gabriel que estava se agarrando com uma garota loira que nos acompanhou e então resolvemos cair fora.

Decidimos dormir na casa de Carol já que sua mãe e seu padrasto estavam viajando para a casa de uma parente que morava em outra cidade e a deixaram com o irmão mais velho que sempre se esgueirava para a casa de sua namorada escondido dos pais dela quando a madrugada caía então não teríamos problemas. Estava tudo tão louco que eu nem sequer pensei no que diria às minhas tias no outro dia quando voltasse para o apê mas isso era o que menos havia para me preocupar. Éramos jovens e viveríamos para sempre.

A casa de Carol tinha dois quartos. Gabriel e sua garota ficaram com o quarto de sua mãe e Nando se acomodou no segundo e eu e Carol ficamos no sofá da sala fumando e rindo completamente chapados olhando para a TV ligada. Ligamos um pequeno rádio num volume baixo para não acordar os outros e logo começamos a nos pegar silenciosa e intensamente após termos certeza de que não seríamos incomodados. A noite era nossa e àquela altura já estávamos muito bêbados para qualquer dignidade e então logo depois de gozar caímos no sono.